segunda-feira, 30 de maio de 2011

Meio dia

Fazia tempo que eu não tomava um choque. Sei lá, deu vontade de ligar o vídeo cassete, assistir mais uma vez a fita do meu aniversário de 2 anos. 1986, será que alguém imaginava que aquela criaturinha meiga, algumas décadas depois, viraria esse poço de impaciência e mau-humor? Vai ver esse maldito fio desencapado desse aparelho velho sabe que mais nostalgia não me faria nada bem. Eu preferia que a fita estivesse mofada. Detesto tomar choque! Pelo menos a luz ainda não foi cortada. O último cigarro do maço. Enquanto eu não pagar os alugueis atrasados eu não fumo mais. Vou fazer um café. Porra! Tenho que parar de tomar esses remédios pra dormir. Parece que meu corpo ta derretendo por dentro. Um pouco de vento vai me fazer bem. Eu devia ter pensado nisso antes de topar alugar esse apartamento; olha que vista escrota! Puta cidade cinza e esse prédio imenso bem na minha frente, nenhuma janela aberta, nenhum vizinho descente nesse bairro decadente cheirando a mijo. Ingenuidade a minha pensar que ia ter ar do lado de fora da janela. É melhor eu tomar um banho, ver se refresco qualquer coisa na minha cabeça. Caralho, onde eu coloquei os meus chinelos? Droga, não consigo encontrar! Deixa quieto, se eu for tomar banho com os pés descalços tomo o segundo choque do dia, não to pra isso. Que fome! Acabou o pão, a cozinha ta nojenta. Pra comer uma coxinha no bar do Valério seria legal se eu tivesse grana, umas moedas, no mínimo, sem contar que eu ia ter que trocar de roupa – estão todas pra lavar. A pizzaria não atende ligação a cobrar, não é mesmo? 16:16, eu costumava ficar feliz quando via essas coisas no relógio. O relógio agora só me lembra que eu vivo me atrasando, e esse atraso também é coisa da minha cabeça, há semanas que eu não marco nada com ninguém, em lugar nenhum. A solidão me tira a noção do tempo e me deixa livre pra poder fazer tudo na hora que eu quiser, como eu quiser, se eu quiser, sem encheção de saco. Assim eu sou mais feliz, certeza

terça-feira, 10 de maio de 2011

Modernos sentimentos oitocentistas


"Uma revoada de memórias entrou na alma de Sofia. A imagem de Carlos Maria veio postar-se ante ela, com os seus grandes olhos de espectro querido e aborrecido. Sofia quis arredá-lo, mas não pôde; ele acompanhava-a de um lado para o outro, sem perder o tom esbelto e másculo, sem o ar de riso sublime. Às vezes, via-o inclinar-se, articulando as mesmas palavras de certa noite de baile, que lhe custaram horas de insônia, dias de esperança, até que se perderam na irrealidade. Nunca Sofia compreendera o malogro daquela aventura. O homem parecia querer-lhe deveras, e ninguém o obrigava a declará-lo tão atrevidamente, nem a passar-lhe pelas janelas, alta noite, segundo lhe ouviu. Recordou ainda outros encontros, palavras furtadas, olhos cálidos e compridos, e não chegava a entender que toda essa paixão acabasse em nada. Provavelmente não havia nenhuma; puro galanteio;  quando muito um modo de apurar suas forças atrativas... Natureza de pelintra, de cínico, de fútil."

Esse é o Machado de Assis em mil oitocentos e pouco já prevendo a parte mais chata dos romances pós-modernos de hoje. O trecho é do livro "Quincas Borba", vale a pena ler

E novamente uma formidável ilustração de Adams Carvalho por aqui