quarta-feira, 2 de novembro de 2016

Ida e Volta

Cada vez que Cecília pegava o caminho de sempre, dava um jeito de lançar um novo olhar sobre ele.

Todos os dias, doze estações, uma baldeação.

Conseguia sempre identificar algo novo.

Falando sobre uma cidade com onze milhões e meio de habitantes, parece facil encontrar novidades, afinal, são pessoas, certo?

Errado.

Às vezes Cecília arregalava os olhos ao perceber o quão iguais todos eram capazes de parecer.

Uma massa anonima seguindo-a ao longo dos dias.

Incontaveis desconhecidos que liam os mesmos livros, vestiam as mesmas roupas, tocavam nos mesmos assuntos, cochilavam nas janelas com a mesma exaustão e desviavam os mesmos olhares quando se percebiam observados.

Cecília colecionava qualquer coisa que pudesse destoar da paisagem iluminada pela luz fria dos vagões lotados.

quinta-feira, 8 de agosto de 2013

Repouso Corrido


Corri pra pegar o ônibus. Tudo que estava no bolso da jaqueta caiu no chão, celular, chaves, fones, moedas, muitas moedas. A porta estava aberta, o motorista impaciente me olhava por cima. Meu primeiro impulso foi deixar tudo no asfalto correr até a porta. Já estava tarde, sabe-se lá quanto demoraria pro próximo passar. Caí em mim, não fazia sentido deixar as coisas ali. Voltei pra tatear o chão atrapalhada, recolhendo tudo. Achei que o motorista não fosse esperar. Esperou mas não respondeu o meu “boa noite, obrigada”.

Sentei no ultimo banco, o ônibus estava quase vazio e, caramba! Fazia tempo que eu não descansava. De repente, descansar se transformou nisso, sentar num banco de ônibus, nada pra ouvir, nada pra ler, ninguém pra conversar, nenhuma questão para desenvolver, ou problema pra solucionar. Apenas uma paisagem feita de penumbra, letreiros e luzes amareladas. Absorvia-a tentando pensar menos. A cidade passava rápido por mim e fazia ventar no meu rosto.

segunda-feira, 5 de agosto de 2013

Presenteando

Não vai dar tempo de nada
Mas no tempo que der
Que ao menos a gente se dê

Não vai dar tempo de tudo
Mas no tempo que der
Que a gente se dê ao máximo

Não vai dar tempo de muito
Mas no tempo que der
Que a gente se dê muito bem

Temos mesmo pouco tempo
E no tempo que já não der
Nos presenteemos com a lembrança
dos bons presentes que nos demos

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

Trecho de Tarde


As palavras vão mais rápido do que a ponta da lapiseira. Por isso não escrevo bem. Também porque  a lembrança empaca no meio do pensamento. Sei o que daria um bom texto, crônica ou capítulo mas não lembro. Então fica registrado um trecho, uma frase, uma frustração. Procrastino a hora de tomar notas. Sempre digo que as ideias voltam e que eu não vou esquece-las. Acontece que a minha memória é débil. Paradóxo, não lembro de nenhuma ideia que tenha voltado.
                                                                              -♦-

Lembrei de quando eu provei pra ela que passar hidratante no rosto dava um gosto estranho na boca. Ela gostava de passar, eu que ficava com o gosto do avesso. Mesmo assim nunca hesitei em beijá-la, tinha uma sede crônica por sua pele, com covinhas, olheiras e hidratante.
A gente tava lá em casa. Eu já tinha comentado que o que ela passava deixava uma sensação estranha. Foi um cometário, quase uma reclamação; não adiantava, se ela não era desatenta era indomável. Levantou e foi passar aquilo na cara de novo.
Eu entrei no banheiro, a abracei, vi como era bonito a gente junto, nossos rostos no espelho, nossas ideias na vida. Ela disse que tinha creme sobrando, sem prestar muita atenção no que fazia e rindo, passou a mão na minha bochecha.
Ah não meu! – protestei. Ela riu mais ainda.
De costas pro espelho me ajudou a espalhar o resto do creme em mim. Carinho e diversão sempre vinham juntos. Voltando pro sofá. Eu já queria lavar o rosto. Esse negócio é gorduroso, meus poros estão sufocando! Quero água, sabão e toalha limpa! Mas até o desespero da minha pele coberta de creme ela sabia acalmar. Me beijou sem parar de sorrir, primeiro a boca, então o queixo, depois a bochecha. Fez uma careta.
– Que gosto bizarro...
– Incomoda né? – respondi
– Sim, um pouco.
Acho que depois disso ela parou de passar aquilo ou mudou de marca. A verdade é que eu não lembro com certeza. Essa é mais uma cena-fragmento que vem de lugar nenhum e não tem pra onde ir, vaga.

segunda-feira, 29 de julho de 2013

Não-dono Disse

Não sei de onde veio
nem porque chegou
Olhei pro lado de fora
e estava alí sozinho
Não pediu nada
ofereceu companhia

chegou manso e paciente
sem dizer bem o que era

Qualquer coisa bela e frágil
que deu voltade de cuidar
e levar pra dentro e alimentar
oferecer banho, canto e colo
ver crescer forte e brincalhão

deixar rosnar um pouco
e latir alto, uivar pra lua
morder só de brincadeira

levar por aí, pra passear
permitir que corra solto
sem coleira nem calçado
ver voltar e fingir de morto
resucitá-lo com afagos
Vira latas, virando realeza

quinta-feira, 25 de julho de 2013

Mudada


Gosta das paredes brancas do novo apartamento. O melhor lugar para armazenar a recente fase da sua vida. Mudou porque era hora de mudar. Mudou porque não existe hora de não mudar. Toda hora trás uma mudança inevitável, mesmo que sutil, mesmo que negada. Chega um pensamento que não se sabe de onde vem e pronto, tudo novo. Estava prestes a se casar, se formar e ser promovida. Abortou isso tudo terminando o namoro, largando a faculdade e pedindo demissão. As paredes do imóvel pareciam tão intactas quanto sua vida mais uma vez zerada, em branco. Se bem que olhando direito dava pra ver umas marcas ali. Dá pra ver que já teve um prego bem em cima, que colaram algo com durex mais embaixo, que algum móvel foi arrastado e esbarrou na parede, que caiu vinho tinto perto do roda pé. Ela não sabia quem tinha morado ali antes, queria saber. Também não sabia quem moraria por lá agora, isso ela não queria saber, queria apenas morar. Separou as caixas ainda lacradas. Ia organizar tudo, ia tomar um banho, ia fazer um café. Levantou e foi explorar o bairro. Assim como a casa nos protege da rua, a rua também nos protege de casa. Solidão, responsabilidades e pensamentos foram dissipados quando se sentou no balcão da padaria e pediu um espresso grande. O funcionário sorriu limpando as mãos no avental. É pra já, dona! 

segunda-feira, 22 de julho de 2013

Perdedora


- Com licença, moça, tem alguma coisa minha aí?
- O que você tá procurando?
- Algo que eu tenha perdido.
- Mas o que é exatamente?
- Ah, pra falar assim, de pronto, eu nem sei. Já perdi tantas coisas.

- Dá uma olhada nos RGs. Meu nome é Paula Campos de Oliveira.
- Ok. Só um momento.
- Obrigada.

- Olha, to vendo aqui. Não tem nenhum RG com o seu nome, senhora.
- Poxa vida! Perdi uns cinco só no ano passado.
- Mas a senhora perdeu todos aqui?
- Não, nenhum. Eu acho.
- Como assim, minha senhora?

- Desculpa, to aflita. Acho que vim atrás de outro tipo de suporte. Tem muita, muita coisa que eu não sei onde foi parar. Será que aqui vocês dão algum auxílio pra gente como eu?
- Auxílio, senhora?
- É, essa não é a central de achados e perdidos?
- É sim.
- Pois então, vocês têm que dar uma assistência pros desatentos crônicos. Se não fôssemos nós, sabe-se lá onde você estaria trabalhando.
- Olha senhora, primeiro que aqui é a central dos achados e perdidos responsável só pelos objetos encontrados nessa unidade. Depois, que nesse caso, provavelmente, eu estaria cumprindo meu horário em outro setor. Mas, francamente, não sei onde a senhora quer chegar com essa conversa.
- Quer dizer então que aqui só encontram e devolvem o que a gente perde?
- Basicamente, senhora. Nós também catalogamos e monitoramos as devoluções.
- Mas e as funções sociais desse orgão? Palestras informativas, diagnósticos de deficit de atenção e alzheimer, reuniões semanais dos distraídos anônimos?
- Isso é uma piada?
- De forma alguma, não é nem um pouco engraçado. Perdi por aí muita coisa necessária: carteiras, remédios, máquinas fotográficas, celulares, mochilas; várias mochilas, livros; autografados inclusive, já até desisti de comprar óculos escuros e relógios. Estou desesperada. Sofro com isso desde os paninhos sujos que as crianças normalmente carregam pra todo lado. Os meus nem duravam tempo suficiente pra sujar. Perdi três alianças seguidas, depois o namorado.
- Calma senhora, não chora, por favor.
- Já cheguei a achar que eu era simplesmente desapegada das coisas materiais, mas ninguém perde um molho de chaves por semana pra exercitar o desapego. Já pensei em procurar um médico, mas não sei onde está a carteirinha do convênio e nem celular eu tenho mais por causa disso tudo. Vocês são minha última esperança. Tenho pensado em coisas tão drásticas. Só faltava vir aqui antes de...


- Senhora, por favor, nem pense em fazer isso. É pecado mortal!


- ...antes de comprar uma pochete.