sábado, 30 de outubro de 2010

Em Tons de Sépia

Sonhei que a gente se conheceu muito antes de nos conhecermos.

Eu era criança, você adolescente. Eu, você e mais um monte de crianças caminhávamos por uma rua dessas que já não existem em São Paulo – as casas baixinhas, a terra laranja no lugar do asfalto, nenhum carro, alguns cães – dava para ver o horizonte no topo da ladeira, logo atrás, o céu, nenhuma nuvem e o sol.

Éramos muitos; caminhando, correndo, saltitando. As roupas surradas, os cabelos desajeitados, os pés descalços. O corpo sujo de terra e suor, a alma limpa, livre. Os sorrisos e os olhares infantis, sem preocupações e com a vida toda adiante.

Não lembro bem se nós diminuímos o passo ou o resto do bando é que disparou à frente, sei que sobramos apenas nós caminhando em silêncio. Ora nos aproximávamos, depois ficávamos mais distantes. Dava pra ouvir as risadas das crianças que estavam lá na frente. Não nos tocávamos, mas trombávamos por acaso, nos olhávamos e depois nos afastávamos rindo, sempre no mesmo ritmo.Caminhamos assim por alguns quarteirões, algumas palavras, muitas risadas, caretas, tudo muito divertido. Nossa infância pintada em tons de sépia. Sons dispersos e olhares claros iluminando cada cena do sonho.

Não sei o que houve, parei de andar. De pé na esquina vi seu corpo esbelto se afastar antes de me perceber parada. Você ainda estava alegre, mesmo sem mim. Eu estava reflexiva. Parei porque eu quis. Parei por que?

São raros os sonhos onde conseguimos gritar quando queremos ou precisamos. Eu quis gritar e consegui, acho que precisava. Gritei seu nome o mais alto que pude, sem desespero, só queria que você me ouvisse e visse que fiquei para trás. Você me viu, me olhou, viu que fiquei para trás. Acho que precisava.

“Tenho que ir para casa” eu disse receosa com aquela voz de criança enquanto meus braços finos acenavam para você. “Mas por que?”, te ouvi perguntar. “Tá tarde já”. “Mas ainda é de manhã...”. Da esquina estreita te olhava me pedindo para não ir. Eu dava passos adiante e recuava, para frente e para trás, não sabia onde pisar. Não era indecisão – ao contrário do que me acontece hoje – naquela época, com aquela idade, eu não pensava tanto.

Um ultimo aceno, abaixei o braço, também te vi acenar sorrindo. Dobrei a esquina começando a despertar, sabendo que não nos veríamos tão cedo.


Acordei com sono, atrasada, pedindo por uma cidade menor, uma cama maior e a chance de termos nos conhecido quando ainda havia espaço para nós no seu futuro.

Essa foto foi tirada em Julho de 97, numa viagem com a família para alguma cidade de MG

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

50 e Poucos Minutos

Cinco de Outubro, quase oito horas da manhã, estou na escola, sentada na primeira carteira. A professora de Geografia está na minha frente falando um monte coisa para toda a sala, não viu que estou com fones nos ouvidos.
Agora está tocando Não é Sempre do Engenheiros do Hawaii.

Próxima música:
“Quanto tempo faz, uma semana atrás, no topo do mundo, na crista da onda, numa euforia de se estranhar”.

Política para desinteressados, esse é o título que dou para mais um discurso da professora Conceição “Você tem que tomar cuidado se você não tem capacidade de pensar”.

“Poesia é um porre” disse o Gessinger de dentro dos fones.

Não lembro de ter feito a prova que ela está comentando. Na verdade, lembro de muita pouca coisa.

“Eu quero saber se você vai além do óbvio” Ela nos questionou. “Eu quero saber se alguém vai além do obvio” Eu me questionei.

Hoje ela veio de verde, verde e azul, uma calça jeans clara – como ela é moderna, um sapato feio que eu achei bonito, brincos roxo e lilás – brilham de mais. Veste um jaleco que a deixa bem profissional, as unhas feitas, pintadas de vermelho. Ela se dedica a si mesma.

“Viver assim é um absurdo, como outro qualquer, como tentar o suicídio ou amar uma mulher” disse o Gessinger.

Mais uma vez o assunto é a vitória do Tiririca... É deprimente se você é brasileiro, é cômico se você não é, e só, poxa vida! A gente ainda nem sabe se ele vai assumir o cargo e todo mundo já se orgulha de dizer que perdeu a esperança no país.

“Tô apenas fazendo com que vocês raciocinem” É, eu não conseguiria, de forma alguma, raciocinar sem ela.

A aula acabou. Chegaram os alunos que sempre entram na segunda aula, não perderam muita coisa estando fora durante aula que acabou. Agora a sala está completa, a aula de Biologia pode começar.

38, 39, 40, presente!

“Se a TV estiver fora do ar quando passarem os melhores momentos da sua vida... "Paranóias" que se cruzam em Belém do Pará” Parece que o Gessinger ainda tem muito o que dizer.

Mesmo parecendo que essa aula não vai acabar nunca, é bom eu ir planejando minha próxima viagem... Curitiba, de um jeito ou de outro, agora ou depois. Vão acabar os ensaios da peça, eu vou ter meus finais de semana livres de novo. Vou sentir uma falta absurda da minha vida como está e das pessoas que estão nela.

“Tire o fiozinho, linda” disse Milena, a professora de Biologia. Adeus Gessinger.

Hora da aula. Fim do texto.

A imagem é uma foto aleatória da minha sala de aula em agosto de 2009.

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Paz?

Estava escuro. [...] Ao redor, muitos vitrais, bancos, imagens de madeira e um crucifixo com a figura de Cristo exprimindo... paz? Estranho, um sujeito pregado numa madeira, com sangue
escorrendo, um arame farpado na cabeça, exprimindo... paz. Estranho.
Saí pela porta da frente, destrancando tudo, abrindo tudo. Os portões da... paz.

Trecho do livro Blecaute, de Marcelo Rubens Paiva

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Interrogações e possibilidades

Fazer o que em São Paulo? Fazer o que em Nova Iorque? Fazer o que com o tempo? Fazer o que com o nascimento diário do sol? Fazer o que com as granadas se estilhaçando em fragmentos? Fazer o que, caso ela tenha o filho? Fazer o que, se acabar a luz? Fazer o que, se formos atacados por jaguatiricas? Fazer o que, se tudo voltar ao normal? Fazer o que com a comida estragando? Fazer o que com tudo o que aprendi? Fazer o que com as palavras? Fazer o que com a humanidade? Fazer o que com a cidade presenteada? Fazer o quecom a indiferença do que é verdade e mentira? Fazer o que para alguma coisa ter sentido?
Por que luto para conservar a minha vida? Por que tomar duas pílulas para dormir? Por que não me transformo num ponto entre o Céu e a Terra? Por que tudo isso aconteceu? Por que a velha não entrou em contato? Por que o puma não me atacou? Por que Stellinha dormiu com o pai da melhor amiga? Por que Martina abriu o seu corpo para mim? Por que fomos os escolhidos? Por que temer a morte? Por que temer a vida?
Talvez valesse a pena esperar. Talvez devêssemos ter filhos. Talvez encontrássemos uma cidade habitada. Talvez tenhamos morrido na caverna. Talvez eu não tenha câncer. Talvez devêssemos saltar de cidade em cidade, inconseqüentemente. Talvez o páraquedas não abrisse. Talvez valesse a pena viver. Talvez valesse a pena morrer. Talvez eu me transforme num pequeno ponto entre o Céu e a Terra. Talvez a vida não fosse tão triste, nem tão repetitiva. Talvez eu ame Martina. Talvez eu ame Mário. Uma nuvem de poeira, flutuando entre o Céu e a Terra, entre a vida e a morte.
O saco é que eu pensava demais. Fazer o que se eu pensava tanto? Por que eu pensava tanto? Talvez eu não devesse pensar tanto. Talvez.

Trecho do livro Blecaute, de Marcelo Rubens Paiva

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Coleções de conversas

Depois de termos nos desvirginado, percebemos que não havia mais nenhum grande problema para ser resolvido em nossas vidas. E isso era um problema muito sério. Passamos a freqüentar a fábrica de sabão abandonada para colecionarmos conversas sobre a nossa situação existencial. Nunca chegamos a nenhuma conclusão. Mas era um lugar bonito, afastado da cidade, afastado de tudo. Ficávamos horas olhando para o céu, deitados no grande gramado, reclamando do tédio, fazendo planos para o futuro, reclamando do solidão da adolescência e de como éramos infelizes fora daquela fábrica abandonada. Éramos muito infelizes. E solitários. De uma coisa tínhamos certeza: não iríamos mofar naquela cidade. Isso não.

Trecho do livro Blecaute, de Marcelo Rubens Paiva, no qual Rindu fala sobre sua adolescência em Sorocaba, ao lado de Mário

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Pôres-de-sol

Minha única diversão era procurar lugares de onde eu pudesse ver, nos fins de tarde, o pôr-do-sol. Não perdia um. No topo de edifícios, nas praças, nos morros. Via a cidade, o céu e o avermelhado do pôrdo-sol. Não sei por que fazia aquilo. Aliás, eu nunca sabia por que fazia uma porrada de coisas. Mas eu gostava de ver as muitas tonalidades que o céu ganhava nos fins de tarde. Gostava principalmente de ver o sol afundando no horizonte. “O sol não é apenas novo a cada dia, mas sempre novo continuamente“, era o que estava pichado numa pracinha. O universo em expansão. Assim são as coisas.
Um dia eu quis mais, muito mais. Fui ao mirante do Pico do Jaraguá. Lá eu via tudo. A cidade imóvel e o céu se transformando a cada minuto. As luzes da cidade piscando, a luz do sol explodindo. As ruas sem saída, o infinito do universo se expandindo contra todas as forças. A lei da desordem, da perfeição, do equilíbrio, da entropia. Eu desejava ser uma parte dele. Eu gostaria de ser tudo. Menos um sujeito perdido numa cidade perdida num deserto de tijolo. A cidade me deixava vazio. O Universo, não. Entropia... Perfeição.

Trecho do livro Blecaute, de Marcelo Rubens Paiva

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Sobre "Blecaute"

Há muito tempo, acho que era Dezembro do ano passado, durante uma conversa com um amigo, acabamos chegando ao tema “livros realmente bons”, aqueles onde a trama prende, a narrativa flui e ainda te tiram daquela rotina mental de pensar sempre nas mesmas situações. Ele me falou de um desses títulos. Começou a ler à noite, num ônibus, era o início de uma longa viagem que partia de Foz do Iguaçu com destino a São Paulo. Seu pai indicou que lesse o livro mais pra se distrair durante o percurso. Começou a leitura no início da viagem, e depois de uma madrugada inteira na estrada, quando já amanhecia, estava lendo a última página do ultimo capítulo. Fascinando pela história, demorou algum tempo para se acostumar de novo com "o mundo real"
O Título: Blecaute, de Marcelo Rubens Paiva (a edição que tenho é de 2006, pela editora Objetiva). O livro é a narrado por Rindu, um universitário que durante um feriado, devido a uma forte chuva, fica preso em uma caverna no Vale do Ribeira com Mario, seu melhor amigo, e Martina, uma garota da faculdade. Depois de três dias de tempestade eles saem da gruta, e já estranhando muitas coisas no caminho de volta, chegam a São Paulo e se deparam com todas as pessoas misteriosamente paralisadas, como se tivessem sido congeladas enquanto faziam coisas habituais como trabalhar, dirigir, comer.. Curiosamente também todos os animais continuam vivendo e se movendo normalmente, o vento as chuvas também seguem sua rotina natural. Esses fatos compõem apenas o primeiro capítulo. No decorrer da narrativa os três jovens vão criando meios para sobreviver, se distraírem, e até se divertirem enquanto tentam entender o que aconteceu apenas com eles e parece não ter explicação. O narrador também conta memórias, fala sobre traumas, apresenta teorias e reflexões sobre o sentido das coisas, presente passado e futuro, relações pessoais, etc.
A história foi baseada num seriado antigo chamado Além da Imaginação, e depois de ler o livro fiquei com muita vontade de assistir também, mesmo tendo uma boa dose de ficção cientifica (que no “Blecaute” quase não há) e possuindo mais de 8 temporadas contando com a nova versão.
Quando ele me falou sobre “Blecaute” eu estava com uma viagem marcada para Curitiba, partiria uns quatro dias depois da conversa. Então, no dia seguinte fui em busca do tal livro. Encontrei, comprei, planejei: seis horas de viagem em frente a história que me faria viajar além da estrada. Com a sacola da livraria na mochila, cheguei em casa bem tarde, depois da meia-noite, logo me preparei pra dormir, teria que acordar cedo no dia seguinte. Já deitada olhei para a mochila, levantei, peguei o livro, li a contra capa, as informações das “orelhas”, folheei algumas páginas, e comecei a ler o primeiro capítulo, não havia mais volta, às 3h da manhã percebi que já tinha lido metade do livro e o tempo passou voando. Eu não ia conseguir dormir sem o fim da história na cabeça, já estava amanhecendo quando cheguei na página onde Marcelo Rubens pede ao leitor que fique meia hora sem ler o livro. Obedeci, já eram 6 horas da manhã, eu precisava me arrumar para sair. Li o ultimo capítulo no caminho, de pé no vagão do metrô. Na tarde desse mesmo dia, tive que passar pela Av. Paulista, ela já não era a mesma, imaginava o asfalto vermelho, as pessoas “congeladas”, procurei os lugares descritos, lembrava deles, mas depois da história, tinham outro significado para mim. Quem leu o livro sabe como é essa sensação.
Acabei lendo outro título durante a viagem, não lembro exatamente qual, mas não foi tão envolvente quanto Blecaute

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Reencontro

Não era uma viagem longa, apenas dez ou quinze minutos, mas eu já tinha feito aquele percurso tantas vezes que ficava terrivelmente entediado, e lamentei não ter levado um livro para ler. Olhava para meu reflexo no vidro da janela, para os outros passageiros que entravam e saíam, para os túneis, e de repente quem vejo? Paula Moors. Ela estava sentada de frente para mim, cinco ou seis fileiras adiante, no memso vagão do metrô. Não sabia há quanto tempo estava ali, nem em que estação havia embarcado. Olhei seu rosto por um momento, o nariz agudo, a arcada proeminente (alguém me dissera que ela colocara aparelho). O cabelo estava mais comprido agora, mas, de resto, não havia mudado tanto, desde a época em que me dissera aquelas palavras terríveis: "Acho que não estou apaixonada por você." Que frase! Que escolha de palavras!
Durante seis meses, talvez um ano, já não lembro, senti sua falta com a aflição de uma dor de dente. Tínhamos cometido tantas intimidades no meio da noite, tinhamos dito tantas coisas secretas, e agora estávamos ali, nós dois, calados, no memso vagão do metrô. O que teria um sabor trágico quando eu era mais jovem - mas que agora precia, sei lá, um fato normal da vida. Nada fantástico, nem indecente, nem engraçado, apenas algo comum: o mistério de alguém entrando e saindo da nossa vida, afinal, desmistificado. (Essas pessoas acabam indo para algum lugar.)

Trecho do livro O Clube do Filme, de David Gilmour

domingo, 10 de outubro de 2010

Circunstâncias

Alguns filmes são decepcionantes quando revistos; você devia estar apaixonado ou com o coraçaõ partido, devia estar magoado com alguma coisa quando assistiu pela primeira vez, porque depois, vistos com uma perspectiva diferente, eles não têm nenhuma mágica.


Trecho do livro O Clube do Filme, de David Gilmour

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Sobre "O Clube do Filme"

Uma amiga minha, apaixonada por cinema, me indicou ler O Clube do Filme há alguns meses. Ná epoca, me interessei porque também gosto muito de cinema, mas não fui logo atrás do livro pois pensei que se tratava de uma colação de sinopses intercaladas com trechos de uma história de família, e na época haviam outros livros que me interessavam mais. Eis que há dois dias eu estava numa livraria procurando um presente para uma outra amiga e me deparo com O Clube do Filme (2007, Editora Intrínseca), folheei, achei mais interessante do que eu imaginava e comprei o Clube do Filme para mim e um outro livro para dar de presente. Valeu muito a pena!
O livro é autobiográfico, nele, o canadense David Gilmour (nada a ver com o do Pink Floyd), hoje crítico de cinema e apresentador de televisão, conta a experiência que teve ao propor a seu filho, Jesse, estudante do ensino médio, desinteressado pela escola, que parasse de ir ao colégio, sem precisar trabalhar ou pagar aluguel, a única condição: assistirem juntos três filmes por semana (coisa que jamais passaria pela cabeça dos meus pais). Gilmor não tem muita certeza da eficácia de seu plano, teme que seu filho se torne um adulto frustrado, mas, para evitar que Jesse se afaste dele e se torne um adolescente revoltado, prefere dar continuidade à proposta. No decorrer da narração, os dois tomam várias decisões importantes, têm lembranças e fazem planos, Jesse se apaixona, Gilmor vê sua carreira oscilar. No meio de todos os acontecimentos assistem, comentam e debatem sobre dezenas de clássicos do cinema (a maioria americanos, alguns canadenses). Lendo fiquei com vontade de assistir todos os filmes na ordem em que são citados. Por isso a maioria das notas no meu ultimo marca-páginas são títulos de filmes, nenhuma das duas filmografias no livro está na ordem de citação.
Um livro que dá origem a ótimas imagens, questionamentos e informação sobre cinema e literatura, além da sensibilidade e maturidade com que trata da relação famíliar entre pai e filho, pais divorciados e aos envolvimentos amorosos de ambos.

Notas de Marca Páginas - Boas vindas

Sempre li bastante. Não tanto nem tudo que eu queria, mas o suficiente para confundir o hábito com o vício. Lendo, encontro diálogos, pensamentos, idéias e pirações geniais que muitas vezes refletem exatamente o que vivo, penso e sinto.
Desde o primeiro livro que realmente gostei de ler, há uns 6 anos atrás, criei o costume de registrar pequenas notas nos marca-páginas e contra-capas dos livros. Às vezes indico trechos e páginas, outras relaciono passagens com filmes e outros livros, também lembro de já ter escrito conclusões minhas e coisas que pessoas diziam à minha volta enquanto eu lia.. Enfim, um monte de palavras que eu gostaria de reunir em um único lugar. Esse luagar: aqui
Bem vindos, então, às notas dos meus marca páginas

terça-feira, 14 de setembro de 2010

Palavra por palavra pra dizer o que?

Guardo, intactos, comprimidos entre folhas pautadas, trechos de textos que na minha cabeça ficam dispersos e vulneráveis a tudo que penso

Não tenho o que dizer. Acredito nisso. Mas não me sinto assim.
Me sinto tão presa quanto distante de mim. E não é nítida a diferença entre prisão e segurança, distância e liberdade.
Trata-se do que espelho ao ter contato com os seres que abrigo. O contato com quem eu fui e com quem serei.
Nesse momento, mais do que em qualquer outro, sinto intenso o contato com quem eu não queria ser e mesmo assim fui e sou.
No entanto, tenho a lembrança de como é estar na pele de quem serei.

Data provavemente de 3 de agosto. Me disseram que a névoa no propósito faz parte da idade


Foto: El Tigre, Bs. As. Argentina (jul 2010)

sexta-feira, 18 de junho de 2010

Nada não

Tenho pensando muito em nada, porque tudo me agrada tanto e eu não tenho tido paciência para confusões. Lá vem o lado abstrato das coisas que eu imagino além dos fatos.

Acordei em um lugar vazio, absolutamente vazio. Ao meu redor nada era tudo o que havia, o maior nada que se pode imaginar estava lá, refletido nos meus olhos, cercando meu corpo, passando por entre minhas pernas, entre meus dedos, por baixo de meus braços. Sobre meus ombros não havia nada, em minha cabeça não havia nada, nada. Eu não via nada, não me lembrava de nada, nem imaginava nada. Eu estava no centro de uma lacuna, que nem centro tinha, pois essa lacuna também era nada. Nada me acompanhava, nada me acontecia. Todo esse nada era maciço, nada estava, nada era. Lá estávamos apenas eu e o vácuo ab-so-lu-to.

O chão não estava lá, e as paredes também não existiam. Não posso dizer exatamente a cor do que me envolvia, eram muitos tons, com muitas formas, diversas luzes em diversas intensidades. Dizendo assim, parece até que chegava a ser alguma coisa, mas para quem estava lá, era nítida a sensação de que não era nada.

O tempo passava como se escorresse, mas também passava como se voasse. Acho que era assim mesmo, o tempo corria de uma maneira dinâmica. Escorria como uma cachoeira e alçava vôo como uma águia. E de tanto nada que havia no mesmo lugar, o tempo parecia visível e eu sentia sua passagem mais presente, veloz e imperativa.

Parada eu olhava para minhas mãos e podia ver minhas unhas crescerem. Sentia cada fio de cabelo se desprendendo de minha cabeça, e eu via os fios ultrapassando o comprimento de meus ombros. Sentia os fatos sendo descontados de meu futuro, a idade me tomava o corpo, trazia-me rugas e cansaço, minha mente envelhecia sem muito tempo de amadurecer. O tempo que era a única coisa tão presente quanto eu, num lugar como aquele, só ousava mudar a mim, fora isso, não modificava mais nada, pois lá, nada havia.

É, brisei..Ah, sobre a continuação do episódio onde perdi parte da minha audição: já fiz os exames, acho que lembro o que tenho a dizer sobre, mas só vou postar depois de entregá-los para o médico analizar. O fato é que o pior já passou e com o resto estou convivendo

sexta-feira, 28 de maio de 2010

Ode a minha burrice

Fiz a coisa mais idiota, que eu poderia ter feito sem envolver armas nucleares ou atentados violentos ao pudor. Fiquei surda (espero que temporariamente) por minha, somente minha culpa. Ainda incrédula, narro:
Tudo começou quando decidi economizar meu dinheiro optando por levar de casa algo para matar minha (selvagem) fome durante os intervalos na escola, isso foi na terceira série. Eis que quase dez anos depois, já no terceiro ano do médio, numa linda quinta-feira de sol (ontem), resolvo levar para a escola, pãesinhos com geléia, fatalmente embrulhados em plástico/ papel magipack (tenho dúvidas quanto a composição do ‘lance’), alguns também chamam esse assassino de papel-filme [clique, veja-o e decida como referir-se a ele]. Peço desculpas por insistir que reconheçam o objeto, preciso deixar bem claro do que se trata, é uma questão de segurança pública.
Recapitulando, estávamos eu e mais umas 5 testemunhas ao redor da mesa do refeitório, todo mundo conversando muito bonitinho, blá blá blá e blá blá blá, até o momento em que eu comecei a me desconectar do assunto e foquei toda a minha atenção numa bolinha de magipack recheada de ar. Não vi passar menos de um minuto daí a até a desgraça dos meus últimos três dias: peguei a bolinha e bem perto do ouvido, estourei-a “Clack!” e então “Piiiiiiiiih” era tudo que eu ouvia, arregalei os olhos e disse “Uoou!”, foi agradável, senti uma vertigem, mas meus amigos me olharam e pude ouvir seus pensamentos “Você é idiota?”. Ninguém disse nada, nem fui impedida de fazer o mesmo na outra orelha, “Aaaí!!!” dessa vez doeu, senti algo furando ou queimando ou sei lá o que dentro do meu ouvido e mais uma vez o “Piiiiiiiih”, dessa vez, mais intenso, agudo e incômodo. Mesmo assim eu fiquei tranqüila, imaginei que tudo voltaria ao normal rapidamente.
Durante aula pós-intervalo comecei a me preocupar. O barulho do primeiro ouvido passara, o do segundo, pelo contrário, dobrara e eu já não ouvia nada além de “Piiiiiiiih”. A tranqüilidade virou aflição, já me reconhecia burra. Meu amigos inconformados com minha experiência tinham certeza disso e agora diziam com todas as letras “Você é idiota!” a versão eufemista da conclusão “Ai Carol, como você é inconseqüente, menina” , eu concordava plenamente com ambos os comentários, mas guardei meu desespero para mim, optei por ignorar o incômodo e esperar passar mais algum tempo até acionar as autoridades.
Em casa a coisa piorou. Enquanto assistia tv, ouvi alguém sussurrando algo para mim, pensei “Pronto, agora tô surda e esquizofrênica”. Desliguei a tv, silêncio total, só ouvia o “Piiiiiiiih”, liguei de novo o aparelho e “Caramba!” começaram a sussurrar mais um vez, “Devem estar querendo me dizer algo útil”, parei pra prestar atenção no que ouvia e “Carambadenovo!” Meu aparelho auditivo estava produzindo um dealey de quase 0,5 segundos, as vozes da tv ecoavam na minha cabeça de um jeito bem surreal. Muito inconformada eu admitia “Cara, fiz uma grande merda”.
Anoiteceu, fui ao médico para entender o que se passava. Eesperei durante uma hora na fila do departamento de pronto-socorro hotorinolaringológico do Cema, só para ouvir o médico dizendo: “Não há ferimento aparente mas o ruído e o eco que você está ouvindo indicam que algo não vai bem, você pode ter sofrido um lesão interna. Marque uma audiometria e aí saberemos o que houve”, dito isso ele me dispensou. Consternada perguntei “Corro o risco de ouvir esse negócio pra sempre?”, “Não posso afirmar nada, faça o exame e saberemos” o tom não foi nada otimista.
Hoje pela manhã senti algo se restabelecendo em minha audição, nada muito significativo, agora tudo que ouço com o ouvido esquerdo parece estar a uns 30m de mim, com eco e tudo. Talvez eu esteja pirando, mas quando andei de metrô, pude sentir minha cabeça produzindo microfonia. Se eu tiver sorte sintonizo am/fm antes de me curar
Só pra deixar claro: atravez do ouvido direito eu estou ouvindo perfeitamente e ainda sou plenamente capaz de me comunicar. Abençoada seja a simetria do corpo humano.

Esse foi só o primeiro capítulo do episódio. O exame está marcado para segunda feira (31/05). Até lá só resta eu me acostumar a ouvir o mundo em 2,5 dimensões, torcer para que seja algo temporário, me acalmar e mais pra frente, bolar maneiras menos idiotas de ter novas sensações (que também não envolvam o consumo de drogas pesadas ou degenerativas). Concluo a primeira parte admitindo publicamente em caixa alta: ME ARREPENDI MESMO, POXA! Agora com letras minúsculas: pelo menos isso me rendeu um texto e uma sensação horrível e inédita

quarta-feira, 26 de maio de 2010

Suposições

               É assim, as sete e meia da manhã de qualquer dia útil. Derretida pelo sono, subo a rua junto a dezenas de desconhecidos. No sentido contrário vê-se mais algumas dúzias de pessoas que também não sei quem são. Acredito que vejo todos, noto que olho para alguns, sei que reparo em poucos. Nunca sigo ninguém, mas admito que penso no que uns e outras farão. A partir daí, sigo imaginando, o antes, o durante e o depois, passo a passo:


               Ela acordou com sono. O cansaço de hoje era o mesmo que sentia na noite anterior, ao se deitar. Pela manhã, o frio agravava o desânimo. Era uma daquelas pessoas que prefere dias de sol e não sabe apreciar a neblina que impregna as manhãs dessa época do ano. Quem notou a névoa que pairava na janela, fui eu; observar a paisagem não fazia parte de seu sistema de atos automáticos.
               Cambaleou para fora da cama. No banheiro, prendeu os cabelos, despiu-se e foi direto para o chuveiro. O banho desconfortável, regado à água morna não durou mais que 5 minutos. Enxugou-se sem muita atenção e, ainda úmida, vestiu-se. Por ultimo, jogou sobre os ombros um volumoso casaco de cor amarelo-mostarda (tivesse pegado outro casaco de seu armário e eu provavelmente não estaria redigindo tais imagens).
               Mochila nas costas, sacola em punho. Saiu de casa e trancou o portão pensando no café da manhã que tomaria no refeitório da firma onde está empregada ha mais ou menos cinco anos. Já desperta, teve sua primeira reflexão não-rotineira, achou seu quintal demasiado pequeno; ao meu ver, ele era proporcional as suas presentes aspirações.
               Olhou para seus calçados gastos e partiu. Mirando apenas o chão, atravessou algumas ruas, deixou para trás uns poucos quarteirões. Até que ao virar uma esquina entrou na rua onde, segundos depois, seria vista por mim.
               Reparei no casaco, nos sapatos gastos e no cabelo preso. Por não ter memória de suas orelhas, lhes atribuí um par de brincos pequenos que em minha mente também não têm forma definida. Nossos olhares não se cruzaram, nem cheguei a ver seus olhos, imagino-os cor-de-vime, muito claros, porém castanhos. Sobre sua idade, corro o risco de estar errada, acredito que tenha entre 33 e 35 anos. Tal informação jamais poderá ser confirmada; logo, não me contradirão; então, afirmo que já havia completado 34 anos de idade, ainda ouso comentar que seu trigésimo quinto aniversário será daqui três meses e onze dias.
               Passamos muito rápido uma pela outra, tempo suficiente para plantar em mim a semente de suas sensações e história. Ela continuou andando, eu fiquei para trás.
Pude imagina-la chegando no fim da rua; indo para a estação de metrô superlotada, esperando na fila para passar a catraca, descendo a escada rolante, aguardando o trem antes da faixa amarela na plataforma tumultuada, entrando no vagão abarrotado de mais trabalhadores exaustos. Comparei nossas impressões: o que para mim seria uma experiência inconveniente e desesperadora, para ela, é um hábito necessário. Cercada de gente por todos os lados, seu corpo pende para frente e para trás e mesmo sem se segurar nas barras, não corre risco de cair. O ambiente está absurdamente lotado e abafado e barulhento. Ela se sente deveras desconfortável, mas não lhe passa pela cabeça que a situação poderia ser outra, melhor ou pior.
               Meia hora mais tarde, salta do vagão e depois de deslizar por algumas escadas rolantes, vê novamente a luz do sol. No sol ela repara e sente a temperatura mais elevada, tira o casaco, agradece em voz alta o calor de agora; muito provavelmente agradeceu a Deus, mas como não quero criar teorias sobre suas crenças, pode ser que esteja apenas dando graças ao homem do tempo que apareceu no telejornal de ontem à noite dizendo que sol reapareceria ainda pela manhã e que na grande área clara, que ia do extremo sul do país a oeste do Mato Grosso do Sul, a temperatura teria elevação de mais de quatro graus Celsius.
               Eu nunca tinha imaginado essa firma, ela perdeu a conta de quantas vezes entrou lá. É durante o horário de entrada que pressinto mudanças em sua vida. Aroudo, homem de meia idade recém-divorciado vindo do interior do Paraná acabou ser contratado pela firma como chefe de manutenção. Logo no refeitório, os dois se entreolham tímidos. Ele se apresenta meio bronco e desajeitado, ela finalmente se dá o direito de sorrir cordialmente e sem querer, sente sua mente divagando sobre futuro e felicidade...
               Nesse mesmo momento, na escola, já estou no início de minha segunda aula.

               Deixo o resto da história por conta da personagem. Só espero que depois desse encontro ou por outro motivo extraordinário ela tenha, em breve, sonhos maiores do que seu pequeno quintal, também gostaria que ela desenvolvesse ousadia para realizá-los.

               A imagem é de Adams Carvalho, Ilustrador com um estilo incrível a quem admiro a beça

terça-feira, 25 de maio de 2010

Cinemória

Assistindo mais um vez o filme A Via Láctea de Lina Chamie ouço a personagem de Alice Braga, Julia, citando um trecho de Otelo


“Aquele que foi roubado, quando sorri, furta algo do ladrão, e rouba a si mesmo quem se consome em mágoa inútil”

Traduzido do trecho original: “The robb'd that smiles steals something from the thief; He robs himself that spends a bootless grief”
Shakespeare é Shakespeare e vice-versa, esta ultima máxima li em um outro blog que também falava sobre a cena.

Achando tudo isso muito interessante, resolvo chacoalhar o Tapete através de um post que, (apenas) para mim, é extremamente útil.

terça-feira, 2 de março de 2010

Do térreo ao décimo sexto

Na tarde de uma terça feira nublada, estávamos no hall esperando o elevador, eu, uma mulher de cinquenta anos ou mais, dois garotos e um shar pei enrrugadinho, o cachorro de um deles.Depois de alguns minutos, a porta do elevador abriu, lá dentro estava um outro menino, com uma bola de futebol. O momento foi rápido, mas o impasse foi evidente. Os garotos iam subir, inclusive o que havia acabado de descer, mas não subiriam, hesitaram durante alguns segundos e decidiram esperar no térreo e pegar outro elevador.
Na hora eu não compreendi bem o porquê, até que a porta fechou e nós começamos a subir, sem eles, ouvindo os latidos do cachorro e o bater de bola no granito. Reclamando ela explicou:
-Se a gente não estivesse aqui pra ficar de olho, eles subiam, com bola, cachorro e tudo no elevador social, como se o de serviço nem existisse.
Minha expressão foi sutil, por entender o motivo do impasse levantei as sobrancelhas, tomada pelo ar da compreensão evidentemente tardia. Eu nem tinha notado que estava entrando no elevador social e também não estava lá para ficar de olho. Ela continuou:
-Nesse prédio agora todo mundo cria tudo, e leva os bichos onde quiser, como quiser.
Acenei com a cabeça, concordando, continuei quieta, ela continuou reclamando.
-Acho que o povo só não traz cabrito aqui pra dentro.
Sorri com certa impaciência, lamentando pelas lamentações da senhora que eu já conhecia desde quase sempre, por outros passeios de elevador e uma amizade de infância com a filha dela. Não queria deixa-la falando sozinha, mas também não tive nada melhor para falar. Soltei:
-Comprei um hamster ontem.
-Um hamster? Ratinho? Ah, mas ele fica o tempo todo dentro da gaiola, nem suja o elevador
-É, ele nem pega o elevador
-Sem contar que ele é pequeno, nem ocupa espaço no apartamento. Tem um morador lá do outro bloco, um absurdo, que tem um cachorro preto, desse tamanho – chegou no andar dela, abriu a porta sem parar de falar - enorme, não sei como é que aquilo cabe no apartamento.
-Ah, é nisso que eu fico pensando.

Ela se despediu e eu fiquei pensando se era nisso mesmo que eu ficava pensando.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Por precaução

Quinta feira chuvosa, dez da noite, Zona Leste de São Paulo, com vontade de comer pizza eu procurava uma boa padaria aberta que servia no balcão...

Desci uns 6 quarteirões andando em cima de calçadas muito esburacadas, debaixo de uma chuva relativamente forte, armada apenas com um guarda-chuva quebrado. Nessa hora eu já nem ligava mais para pizza do balcão da padaria, nem me importava se eu estava com as calças e com minhas meias novas encharcadas, tudo que eu queria era manter minha dignidade e (se possível) minha vida intactas. Pra tirar minha atenção do alto risco de assaltos, estupros e sequestros, desci a rua bolando argumentos broxantes para recitar caso fosse abordada por algum estuprador.
Eram mais ou menos assim: “senhor estuprador, me ouça, eu sei que o senhor está armado e pode atirar em mim se eu não cooperar com esse seu ato grosseiro e violento, mas eu quero dizer que não sucumbirei a sua força bruta e se fizer questão de usufruir do meu corpo jovem e sadio vai ter que me assassinar primeiro. E se você quiser mesmo atirar em mim, espero que esteja ciente de que estará correndo o risco de ser preso depois de identificado como dono da arma que disparou a bala que encontrarão na minha nuca. Sem contar que você não terá como relacionar-se sexualmente comigo já morta e ensanguentada; não do modo com se relacionaria caso me conhecesse em outra circunstância e me conquistasse com um pouco de romantismo e charme, talvez. Sugiro então, que desista de cometer seu crime volte para sua casa para refletir um pouco, tenho certeza de que ainda tem um futuro bonito pela frente, onde alguma mulher, mesmo que não te ame, vai um dia aceitar fazer sexo consensual com você.”
Nessa hora eu enxugaria as lágrimas do sujeito envergonhado e arrependido, dava pra ele uns trocados pro busão e ainda o aconcelharia a se matricular como suplente num colégio público.
É muita sorte para um garota ter um discurso desse na ponta da língua durante uma tentativa de estupro. Mais sorte ainda é não precisar usa-lo, como eu não precisei, pois, depois de quase 40 minutos de caminhada, na chuva e no escuro, cheguei a tal padaria que procurava, segura, sã, salva, encharcada e morrendo de frio.

O resultado dessa experiência: um pedaço de pizza de palmito, outro de escarola (com pedaços de bacon que ficaram no prato) , três conversas fiadas com desconhecidos maneiros, um monte de roupas molhadas e R$7,00 a menos na minha caixinha.