quarta-feira, 18 de julho de 2012

Cólera Cirúrgica

Ficou na boca
o gosto amargo
da fatia seca
de saudade crua

Saudade que
com esforço
a rotina mastigou

Mesmo em pedaços
desceu travando
até o estômago
deixando nós
apertadissimos
por onde passava
Lá ela repousou

Nem o ácido do tempo
foi capaz de digeri-la

Acabo carregando
para todo canto
esse sentimento
indigente, indigesto
alojado feito verme
atrás do umbigo

Quando a gente se vê
ainda sinto reviravoltas
Ventania dentro do ventre
ardendo feito úlcera
que curo com esses
e outros versos 

segunda-feira, 16 de abril de 2012

Café de Amanhã

Quando pude me afogar no pote,
não sabia direito o que era sede.
.
Um gole de água salgada, um susto;
motivo pra negar um oceano inteiro.
Aquela história morreu na praia.
.
Agora desidratada, esturricando
sob a luz atificial da cozinha,
encontro no copo meio vazio
resquícios de memórias incineradas
                                                 [pó]
Seu rosto insolúvel navega
a gota que me sai dos olhos.
Cacos de vidro sobre o azulejo,
café com leite derramado.
.
Não havia açúcar na lista de compras
.
Fervo outro litro de água,
invento um chá digestivo
pra tingir de verde olíva
minha inquietação cor de fogo.
Queimo a língua no primeiro gole
Queimaria essa casa,
o bairro e a cidade
se isso me fizesse esquecer.

quinta-feira, 1 de março de 2012

Outra Vez


Incompreensível; ele gosta tanto de música romântica, mas quando ela entra de mansinho no quarto e o acaricia os ombros e beija sua nuca e diz que tem uma supresa, ele levanta ríspido, diz que precisa trocar o disco. Troca, põe outra música romântica, e pergunta se ela já deu boa noite pras crianças, se terá pão fresco amanhã de manhã –  qualaquer coisa que a tire dalí.
.
No rosto dela sobram os traços da derrora; olhos turvos, a boca entreaberta vacilando entre se calar e quase dizer. Só por agora ela desiste e sai do quarto na mesma mansidão com que entrou. Queria saber em quem ele pensa quando a Gal Costa interpreta o Roberto Carlos cantando sobre a mais estranha história que alguém já escreveu.

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Bom dia, sono

                Faz tanto tempo que eu não tenho problemas com meu sono que posso até dizer que nunca tive problemas com isso. Digo sono me referindo a hora de dormir e as horas em que durmo. Não sou de ter insônia, deitar, pra mim, é sinônimo de fechar os olhos e só abrir de manhãzinha. Eu também não ronco nem me debato. Quem dorme no mesmo cômodo que eu, dorme em paz. Sonambulismo, não consigo nem imaginar como é isso. Já ouvi muitas histórias de gente que enquanto dormia levantou, assaltou a geladeira, deu a volta no quarteirão, entrou em casa que não morava. Acaba passando pela minha cabeça que passa pela cabeça dos sonâmbulos uma certa vontade de aventura inconsciente. Se eu não me sentisse acuada pelo excesso de escuro e silêncio, eu bem que daria minhas voltas pelo condomínio, mesmo consciente, só pela aventura. Às vezes falo enquanto durmo, isso é verdade. Não sei com que freqüência. Durmo num quarto só meu, a maioria do que digo é dito pra ninguém. Uma vez meu pai veio dizer que me ouviu resmungar algo de madrugada, abriu a porta do meu quarto, além de prestar atenção no que eu dizia, anotou e me mostrou o registro depois. O que eu falei não tinha sentido nem relevância. Achei engraçado ele ter tido o cuidado de anotar pra não esquecer.
           Vejo como uma boa característica o peso desse meu sono. Tv ligada não me amola, o ronco alheio também não, bateção de porta pela casa passa despercebida aos meus ouvidos concentrados apenas no que eu acabo sonhando. Vai ver é isso, eu sonho muito, não só no sentido piegas de traçar planos e caminhos para a vida. Viajo a noite inteira, distraída, presenciando cenas que nem o cineasta mais pirado, tendo à disposição os efeitos especiais mais caros e o elenco mais bem pago de Hollywood seria capaz de desenvolver nem em uma década. É coisa que eu nem sei como contar. Porta de carro que vai dar na porta de entrada de casa que às vezes é meio que uma floresta, mas tem azulejo no chão e só tem gente da minha antiga escola andando por lá, e eu olho o rosto da minha mãe, mas na verdade é outra pessoa, e as vozes vêm misturadas, e o corredor de entrada do supermercado é infinito e todo bloqueado pelos caixas com filas enormes, quilômetros e quilômetros de filas e de corredor. Alguém tem que me acordar. Talvez eu esteja tendo um pesadelo, talvez a consciência da realidade esteja vindo pros meus olhos ainda fechados.
            Mesmo confusos, meu sonhos são leves e mesmo sendo leves os sonhos, meu sono é pesado, só consigo acordar mesmo depois de muita insistência. Tenho pena de quem acredita que falando meu nome e dizendo, hora de acordar, vai me pôr alerta em dois tempos. Nem o despertador, que é feito pra isso, consegue executar tal feito. Tem que cutucar, mexer no meu edredom-fortaleza, abrir a janela, se bem que nem o Sol, que é a estrela central do Sistema Solar, consegue me tirar da cama com velocidade.
              Me acordar é difícil, por isso eu digo, problemas de verdade eu tenho com meu sono. Digo sono me referindo àquela vontade que dá na hora de acordar, de agarrar o travesseiro pra nunca desgrudar do colchão, nem abrir os olhos. Vou ficando livre do edredom, mas cada pedaço de corpo que ele liberta se sente mais torturado. Entra o sol pela janela, o olho arde, a cabeça gira, não dá nem pra saber se o pensamento faz parte do sonho ou da realidade. Alguém diz, bom dia. Eu lembro, ah, realidade.. A boca amarga quase que precisa reconstituir os dentes. Com muito esforço, busco a voz lá na garganta que, ressecada, não consegue emitir mais do que um ruído rouco todo reticente, hm.. b..m di..
            Aí vem a vontade de espreguiçar. A preguiça dá uma trégua. O corpo parece que se reconstrói. Os braços ganham força até para levar as mãos aos olhos. A visão se restabelece. Ganho pernas para levantar da cama. Adeus travesseiro. A despedida é dura, às vezes corro de volta para mais alguns segundos aninhada. O calor, a preguiça, o horário, o horário! Salto da cama quase meia hora mais tarde. Mesmo assim a realidade só parece completa depois de um longo banho. O vapor no espelho do banheiro vai se dissolvendo, seco os cabelos enquanto vejo meu rosto pouco a pouco mais nítido. Agora sim, bom dia