terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Objetivos Subjetivos

As ultimas semanas de dezembro chegam, sinal de que estamos chegando ao fim. Talvez seja o fim de um ciclo, junto com seu recomeço, ou o fim de uma era, ou simplesmente o fim de um ano. Essa época não vem isenta de significados políticos, econômicos e religiosos. De qualquer forma, o combo Natal + Ano Novo + Férias exerce influência inegável nos ânimos e desejos de muita gente.

Deixo as minhas ideias oscilarem entre racionais, supersticiosas e sentimentais. Não sei bem se é pelo pensamento, pelos olhos, ou pelo (mimimi) coração, mas o otimismo entra, junto com ele vêm as possibilidades, os planos e os medos, tudo mais claro. É mais do que uma folha nova no calendário, é um calendário todo novo.

Hora de analisar o que o acaso fez por mim durante esse ano e o que eu fiz com as sortes e azares que tive. Me conscientizar sobre onde estou depois de muitas decisões, atitudes, tensões, distrações, sucessos e equívocos dissolvidos nesses 365 dias.

Talvez eu recaucule a rota, talvez eu reforce meus planos já traçados. É assustador e gratificante saber que com o tempo fui conquistando autonomia para fazer isso. É muito importante também saber que tenho o apoio necessário para traçar e realizar meus sonhos, por isso eu não me sinto só, mesmo sabendo que as maiores consequências serão exclusivamente minhas

domingo, 16 de outubro de 2011

212

Todo perfume
tem como objetivo impregnar
e te levar de volta pra casa
e levar o encanto
até o seu lado da cidade

Quem leva quem
na verdade não dá pra saber
Vai junto o resto de abraço
o macio no pisar dos passos


terça-feira, 4 de outubro de 2011

Contra-audição

Se digo sim
posso estar querendo dizer talvez
Se digo talvez
posso estar querendo dizer não
Se digo não
posso estar querendo dizer mais tarde
Se digo mais tarde
posso estar querendo dizer nunca

Se digo nunca
posso estar querendo dizer que nunca se sabe
Se digo que nunca se sabe
posso estar querendo dizer que certamente
Se digo que certamente
posso estar querendo dizer que é possível
Se digo que é possível
posso estar querendo dizer que eu não sei
Se digo que não sei
posso não saber mesmo

Se eu não souber mesmo
posso querer não dizer nada
Se eu não quiser dizer nada
posso sorrir
Se eu sorrir
posso estar querendo ver você gargalhar
Se sorrir não funcionar
posso te contar uma piada idiota

Se eu te contar uma piada idiota
posso estar querendo fugir de um assunto sério
Se eu fugir de um assunto sério
posso estar querendo encará-lo
Se eu encarar um assunto sério
minha cabeça pode ficar cheia de dúvidas
Se eu ficar cheia de dúvidas
posso correr atrás das respostas
Se eu correr atrás das respostas
Podem me perguntar
se eu quero mesmo sabê-las
Aí eu posso dizer sim
Mas se digo sim...

sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Três Pontos

            
            -Ta desanimada? Já sei, cansada! Dormiu pouco né?
            -Não, não... Eu tava lendo. Agora to... preocupada... com a história
            -Ah ta, tudo bem eu vou indo.
            -É...

            Esse “É...” eu falei muito mais pra mim do que pra ela. Ela já não estava mais lá. Meu excesso de reticências começava a me irritar. Até no texto. A datilografia delas tira a seriedade da imagem das palavras sobre o papel. São três pontos, um exagero de final que ironicamente servem pra dizer que o que eu dizia não acabava ali. Mas tinha que acabar, porque tava tudo bem, porque ela já ia indo.
            Mas mais do que a imagem ou a presença das reticências na fala cansada, o que me irritava em cada expressão minha, era o efeito que elas causavam nas pessoas: um certo constrangimento. Sabiam que eu tinha mais o que dizer. Sabiam que não queriam me ouvir. Não as culpo. Eu mesma já disse que ia indo, diante de assuntos tão mais preocupantes. Todos sabíamos que eu e tudo ficaria bem, mesmo que sem ânimo, mesmo que pagando pela insônia da noite anterior, mesmo que preocupada com a história que eu lia. E todos iam indo. E eu ficava. Desanimada, cansada, com sono e preocupada. E nem tão preocupada com a história, mas frustrada por saber que eu jamais escreveria algo capaz de preocupar alguém tanto quanto eu estava agora; frustrada por só abordar assuntos banais, como minha preocupação com o enredo de um livro que só eu lia e meu excesso de reticências e uma despedida fria...

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Quilômetros Passados


Se todos os quilômetros do mundo
fossem juntos medir o futuro
Trabalhariam a eternidade ao quadrado
e quando terminassem a medição
se partiriam em milímetros desiludidos
Pois a medida que acreditariam ter obtido
já seria a do passado

segunda-feira, 4 de julho de 2011

Ouvidos ao Caminho


            O dia tinha começado há muito tempo, mas não para mim. Eu ainda estava sonolento, escorado na primeira hora daquela manhã, sentado atrás do balcão da cozinha com os olhos fixos num azulejo qualquer. Reflexivo era a palavra que melhor me definiria naquele momento. A não ser que cada minuto meu nesse estado fosse uma gota de água do mar, aí a palavra mais exata seria náufrago.
            O que me alertou sobre a imperativa passagem do tempo foi a xícara do café que eu fiz assim que cheguei na cozinha. Agora o líquido que me queimou a língua no primeiro gole era uma solução fria e sem sabor que eu cuspi assustado de volta na xícara. Olhei o relógio, por muito pouco eu ainda não estava atrasado. Despejei o resto no ralo e saí de casa. O incomodo causado pelo gosto amargo do café quase gelado foi suficiente para me fazer despertar.
            Não me convém dizer o que de tão importante eu tinha que fazer naquela quinta-feira nublada. Era só mais uma burocracia inadiável dessas que nos fazem levar a rotina adiante. O bom foi que esse compromisso me fez andar sozinho pela cidade.
            Enquanto caminhava me percebi mais confuso do que nunca. Era como se cada paralelepípedo daquelas calçadas externasse uma opinião completamente considerável sobre a minha vida. O problema é que essas opiniões não entravam num acordo, cada uma me dirigia por um rumo diferente. Um turbilhão de lembranças, pendências e possibilidades sussurrado, soletrado, berrado nos meus ouvidos.
            Comecei a rir sem motivo aparente quando um dos paralelepípedos cogitou claramente algo que pode ser resumido numa outra palavra, esquizofrenia. Aí eu fiquei tranqüilo de novo, a consciência me afastava da loucura, meu próprio humor me afastava daquilo que em mim se assemelhava à tristeza.

quarta-feira, 15 de junho de 2011

Manhã de Cecília


             Acabei de abrir os olhos, ainda estou com muito sono. Em cima da cômoda meu antigo relógio de ponteiro me diz que são oito horas da manhã. As cortinas estão fechadas. A penumbra revela o caos em que o quarto se encontra desde a noite anterior, vejo roupas jogadas por todos os lados, amarrotadas e fugitivas. Roupas minhas e roupas dela.
             Ah, como ela está linda, a cabeça leve sobre o travesseiro, o cabelo bagunçado, algumas mechas sobre o rosto. Tem os olhinhos fechados, o sorriso sereno, a respiração profunda e pausada. Seus ombros estão à mostra, alguns cachos encobrem parte do pescoço. Toda sua pele é macia, macia e morena. Ela está agarrada ao edredom que lhe desce pelo corpo cobrindo peitos, barriga e coxa. Daqui consigo ver seus pés descalços e descobertos, pequenos e imóveis, fascinantes.
             Examino seu rosto simétrico e luminoso, como eu gosto desse queixo, essas bochechas, o sorriso que ainda trás todas as cores de uma adolescência vívida. Está com os olhos fechados e ainda assim imaginativos. Os cílios longos quando se abrem revelam um olhar intenso como a brasa de um cigarro aceso. Imagino o que passa sob suas pálpebras; se me faz personagem de seus sonhos, se refaz ludicamente os passos da nossa noite, se faz planos para o nosso próximo final de semana, nosso próximo verão, próximo outono...
             Eu poderia ficar observando-a por horas, tão calma e serena, aflora em mim os sentimentos mais nobres. É irresistível assisti-la assim; distraída, porém segura e confortável.
             Também é irresistível tocá-la. Afasto a mecha de cabelo que lhe cobre parte do rosto. Com a ponta dos dedos exploro seu queixo, seus lábios, seu nariz delicado, os olhos concentrados num sono livre. Aproximo-me a fim de sentir seu cheiro; um aroma sofisticado e suave.
             Colo meu rosto no seu, afogo minhas mãos em seus cabelos. Preciso acordá-la, ouvir sua voz ainda preguiçosa, seu "bom dia" assegurando-me de que tudo que couber no resto do dia será perfeito. Envolvo-a nos meus braços sinto-a mais intensa, inteira, presente e disposta, ao meu lado, comigo, no meu espaço.
             Ela demonstra os primeiros sinais de que despertará; boceja, espreguiça, sorri e quando parece que está preparada para abrir os olhos e me fazer a mulher mais feliz do mundo... O despertador toca.

-♦-

             Acordo assustada, desapontada. Agora sim são oito horas da manhã, meu quarto está mesmo tomado por uma desordem drástica. Mas todas as roupas que estão por aqui são minhas, só minhas. O resto da cama está vazio, esse vazio me aborrece há pouco mais de uma semana, uma semana difícil. Acabo de começar mais um dia sozinha, não sei bem se lembrando ou sonhando minhas manhãs com ela.

sexta-feira, 3 de junho de 2011

Sala 209

              Ela me inspirava, me inspirava alguma coisa parecida com medo. Passava a aula toda me encarando. Mesmo quando eu estava parada ela analisava meus movimentos. Eu conseguia ver tudo com o canto do olho e me mantinha aparentemente inconsciente, não queria alimentar o que quer que habitasse seu pensamento.
              Se por acaso eu passasse os olhos pela sala e esbarrasse em sua obscura figura a me observar, ela esquivava sua visão e inventava outra coisa para mirar.
              Me lembro de duas ou três vezes em que não conseguiu inventar nada. Então nossos olhares se cruzaram e permaneceram fixos, atracados como lutadores de judô sobre um tatame. Desconforto e cumplicidade levando a situação adiante. As duas pegas no flagra, ela em sua admiração silenciosa, eu em minha curiosidade, ambas desconcertadas.
              Vontade de sorrir, de gargalhar, virar o rosto e não acreditar naquilo. Esboço de inquietação no ar. Acabávamos inventando mais o que mirar. Os olhares se desconversavam.

segunda-feira, 30 de maio de 2011

Meio dia

Fazia tempo que eu não tomava um choque. Sei lá, deu vontade de ligar o vídeo cassete, assistir mais uma vez a fita do meu aniversário de 2 anos. 1986, será que alguém imaginava que aquela criaturinha meiga, algumas décadas depois, viraria esse poço de impaciência e mau-humor? Vai ver esse maldito fio desencapado desse aparelho velho sabe que mais nostalgia não me faria nada bem. Eu preferia que a fita estivesse mofada. Detesto tomar choque! Pelo menos a luz ainda não foi cortada. O último cigarro do maço. Enquanto eu não pagar os alugueis atrasados eu não fumo mais. Vou fazer um café. Porra! Tenho que parar de tomar esses remédios pra dormir. Parece que meu corpo ta derretendo por dentro. Um pouco de vento vai me fazer bem. Eu devia ter pensado nisso antes de topar alugar esse apartamento; olha que vista escrota! Puta cidade cinza e esse prédio imenso bem na minha frente, nenhuma janela aberta, nenhum vizinho descente nesse bairro decadente cheirando a mijo. Ingenuidade a minha pensar que ia ter ar do lado de fora da janela. É melhor eu tomar um banho, ver se refresco qualquer coisa na minha cabeça. Caralho, onde eu coloquei os meus chinelos? Droga, não consigo encontrar! Deixa quieto, se eu for tomar banho com os pés descalços tomo o segundo choque do dia, não to pra isso. Que fome! Acabou o pão, a cozinha ta nojenta. Pra comer uma coxinha no bar do Valério seria legal se eu tivesse grana, umas moedas, no mínimo, sem contar que eu ia ter que trocar de roupa – estão todas pra lavar. A pizzaria não atende ligação a cobrar, não é mesmo? 16:16, eu costumava ficar feliz quando via essas coisas no relógio. O relógio agora só me lembra que eu vivo me atrasando, e esse atraso também é coisa da minha cabeça, há semanas que eu não marco nada com ninguém, em lugar nenhum. A solidão me tira a noção do tempo e me deixa livre pra poder fazer tudo na hora que eu quiser, como eu quiser, se eu quiser, sem encheção de saco. Assim eu sou mais feliz, certeza

terça-feira, 10 de maio de 2011

Modernos sentimentos oitocentistas


"Uma revoada de memórias entrou na alma de Sofia. A imagem de Carlos Maria veio postar-se ante ela, com os seus grandes olhos de espectro querido e aborrecido. Sofia quis arredá-lo, mas não pôde; ele acompanhava-a de um lado para o outro, sem perder o tom esbelto e másculo, sem o ar de riso sublime. Às vezes, via-o inclinar-se, articulando as mesmas palavras de certa noite de baile, que lhe custaram horas de insônia, dias de esperança, até que se perderam na irrealidade. Nunca Sofia compreendera o malogro daquela aventura. O homem parecia querer-lhe deveras, e ninguém o obrigava a declará-lo tão atrevidamente, nem a passar-lhe pelas janelas, alta noite, segundo lhe ouviu. Recordou ainda outros encontros, palavras furtadas, olhos cálidos e compridos, e não chegava a entender que toda essa paixão acabasse em nada. Provavelmente não havia nenhuma; puro galanteio;  quando muito um modo de apurar suas forças atrativas... Natureza de pelintra, de cínico, de fútil."

Esse é o Machado de Assis em mil oitocentos e pouco já prevendo a parte mais chata dos romances pós-modernos de hoje. O trecho é do livro "Quincas Borba", vale a pena ler

E novamente uma formidável ilustração de Adams Carvalho por aqui

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Sobre o acaso e a confiança

            Finalzinho de janeiro, passava das quatro da manhã naquela rua do centro da cidade de São Paulo, a que tem nome de mulher, que durante todas as noites serve de abrigo aos que não se interessam pelo silêncio de uma noite de sono e buscam diversão e companhia.
            Uma guria alta, de cabelos cacheados – tinha cara de universitária, estava inegavelmente bêbada – descia a rua com os passos trocados e seus amigos desligados. Todos entraram num bar e foram para os fundos à procura de um banheiro. No caminho, muito tonta, ela olhou para uma das mesas do boteco onde duas pessoas estavam sentadas conversando. Só com sua presença interrompeu o diálogo dos dois, e do modo mais natural, falou:
            –Cara! Vocês são o casal mais bonito do mundo.
            Riu uma risada caricata, digna de um bêbado de seriado americano, e partiu atrás do resto do seu bando. Deixou o homem e a menina sozinhos com o copo de água e a garrafa de Coca-Cola sobre a mesa.
            A garota era miúda, com os braços finos e os cabelos bem curtos. Ele tinha os braços igualmente finos, mas era muito alto, além de barbudo e careca. Os dois se entreolharam gargalhando sutilmente, apreciando a comédia daquela cena. Não se reconheciam nem se reconheceriam como um casal, muito menos o mais bonito do mundo. Na verdade, haviam se conhecido naquela noite mesmo, há menos de uma hora.

-♦-

            O calor dentro da pizzaria estava infernal quando todos decidiram ir embora. Alguns iriam de carro, outros de carona ou táxi. Caroline ficaria por lá até as quatro e pouco esperando o metrô abrir.
            Já sozinha, desceu a rua. Na frente de cada casa de show, restaurante ou bar lotado, uma calçada lotada reunindo sempre uma porrada de timbres, sotaques, estilos, copos cheios e cigarros acesos. Chegou ao final da rua sem encontrar nenhum conhecido. Atravessava mais uma vez as multidõezinhas, dessa vez na direção da avenida principal, querendo que o tempo passasse rápido para poder voltar logo para casa e descansar da longa noite que parecia estar no fim. Nisso, um homem a abordou, tinha traços brutos e gestos delicados, perguntou se ela estava sozinha.
            –Sim, estou.
            –Quer ir tomar alguma coisa comigo?
            Dita fora de contexto por um desconhecido, essa frase parece um puta xaveco barato tirado do roteiro de um filme pornô. Mas havia naquele homem, uma cordialidade insegura, algo que o fazia, apesar da barba volumosa e dos tênis surrados, parecer tão vulnerável e solitário quanto ela.
            Quem já caminhou sozinho por São Paulo sabe o quão angustiante é a sensação de se sentir só mesmo cercado por tantos rostos, ouvindo as vozes de um monte de gente com quem você jamais conversará. Ele trazia essa angústia consigo, mas teve coragem para tentar superá-la buscando a companhia daquela jovem distraída que por confiar no que viu além do que havia, aceitou o convite do homem, dando início a aquilo que mais tarde viria a ser uma grande amizade entre dois artistas, domadores de traços, cores e palavras.

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Relato Boreal

Minha boneca de neve
tem  olhos maciços
cravados na própria pele
cravados nos meus olhos
refletindo as cores da aurora
Tem o nariz alongado,
um  vegetal cru
quase fora de contexto
Tem reticências no lugar dos lábios
e  galhos rígidos
ao invés dos braços

Ao redor do pescoço
da minha boneca de neve
tem um cachecol comprido
que já foi meu
e que ainda é xadrez
Ela tem sobre o peito
botões que não fecham nada
que eu já vi desabotoados
que eu mesma abotoei

Minha boneca de neve
tem pernas de gelo
que não vão a lugar nenhum,
me esperam de pé
Tem a pele fria
que derrete sob meus toques
Tem a alma repleta de fractais
claros, complexos e cristalinos

Minha boneca de neve
não vive no meu país
nem pode me visitar,
Mas não acha graça quando
brincando, ameaço esquarteja-la
e guarda-la dentro do freezer
para vê-la sobrevivendo
Mesmo assim tem ciúme
dos castelos de areia
que construo nas encostas tropicais
aqueles que o mar sempre dissolve
antes de amanhecer

Minha boneca de neve
tem em si
a luz do dia polar, que dura meses
e o mistério das noites
que duram uma estação inteira
Vive no topo do globo
aos pés de uma colina
que eu nunca escalarei

No natal passado
segui o impulso de reencontra-la,
fui vestida de coragem,
sem luvas, sem gorro, sem nada
Fotografia pra carregar atrás dos olhos:
ela, eu e a nossa aurora
Bela última lembrança
antes da última tempestade

O vento me pegou despreparada, despida
O frio me virou do avesso
Congelado, meu sangue se estilhaçou
Meus ossos se retorceram de dor
Agonizei sobre a neve
Fui castigada pelo pior dos invernos

Minha boneca de neve
que não é feita de carne
só desmoronou, enquanto eu congelava
Por causa de seus pés descalços
presos ao chão de gelo
não pôde me socorrer
A vi deformada
enquanto o céu se abria mais uma vez

Com minhas mãos pálidas
busquei seus olhos
entre os destroços da paisagem branca,
encontrei seus braços
já secos e sem força, fincados no gelo
O desespero me percorreu a espinha
encobriu meus ombros
gelou minha nuca
e me tomou os pulmões
Com o ar do meu último fôlego
e com o que restava de energia
no fundo da minha garganta

Gritei

Meu brado rouco de uma única sílaba
fez todo o continente estremecer

O vento silenciou

Desencadeei a ira da colina
Morri sob a avalanche

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Mas Berenice precisa desconversar

       Berenice é uma mulher pequena, mais de 30 anos de idade, menos de um metro e meio de altura. Gosta de dizer que tem um físico breve, mas que é compensado por sua personalidade extensa. Ela é capaz de conversar sobre qualquer assunto, com qualquer um e ainda pode fazê-lo em cinco idiomas diferentes.        
        Mas há um porém: dentre todos esses quaisquer assuntos ela possuía três exceções, pois Berenice não falava sobre futebol, não falava sobre religião e não falava sobre o tempo. Evitava-os por motivos diferentes, mas com o mesmo empenho e intensidade. Quanto a isso, era muito radical.
      Quando um desses temas era posto em pauta, em qualquer situação, ela esquivava sua mente da conversa e ia pensar em outra coisa. Não ignorava o que era dito, mas também não dava plena atenção, muito menos, sua opinião.
      Ás vezes, o papo era com uma pessoa só, cara a cara, um xis um, frente a frente e particular, nessas horas o único jeito de escapar era dar a deixa para que seu adversário de conversa desistisse do assunto. Os desafios eram: não ser estúpida, pedante nem parecer intolerante e também dispensar o tema o mais rápido possível.


-♦-

      –E aí, será que chove?
      “Alerta no hall do 23º andar! Vizinho falando sobre o tempo”.
      –Quem sabe, não é mesmo? – Berenice sorriu.
      –Chove sim, você viu o solzão que fez ontem o dia todo?
      “Poxa vida! Se ele inventou que sabe se chove ou não, por que me perguntou sobre isso? Eu encarava até uma fofoca sobre o carrinho de supermercado que foi roubado da garagem do condomínio pelo garoto viciado, filho da advogada do sétimo andar”.
      –Não pude ver, passo o dia todo trabalhando dentro de um hotel.
      –Então se chover mais à tarde, você nem vai ligar, né?
      “Ele bem que podia ter perguntado sobre a minha função, há quanto tempo eu sou tradutora em uma casa de câmbio, por que precisam de uma tradutora em uma casa de câmbio ou até se o rapaz do sétimo andar se envolve com algo além de cocaína, crack, talvez. Se eu não conseguir guinar o rumo da conversa agora, vou desconversar e ficar calada até chegar no térreo, faltam só mais 13 andares.”
      –Eu ia ligar se a Marginal Tietê ficasse alagada ou se acabasse a luz no condomínio.
      –É verdade, sempre que faz sol como fez ontem eu já fico imaginando o congestionamento que vai dar aqui no bairro depois da chuva.
      “Ufa! Acho que consegui.”
      –Horrível, semana passada fiz em duas horas o percurso que normalmente me toma só 30 minutos.
      –Tomara então que a chuva de hoje não seja catastrófica, só refrescante, com ventinho e tudo.
      “Ai, eu desisto! Por a mão no bolso, olhar para cima, deixar a conversa pra lá, só mais cinco andares e pronto”
      –É verdade, tomara mesmo...

sábado, 5 de fevereiro de 2011

A Serra de Botucatu, onde fica?

O bairro era grande. Depois de quase duas décadas perambulando pelo lugar, algumas vezes com rumo certo, outras a esmo, ela ainda não sabia o nome de todas as ruas nem quais eram paralelas ou perpendiculares a quais.

Se um estranho lhe pedisse informação, as possibilidades seriam duas: forjar uma certeza e responder intuitivamente algo que provavelmente estaria errado e faria o estranho se perder ainda mais, ou pedir desculpas e forjar uma verdade, dizendo que não conhecia muito do lugar.

Na verdade, ela conhecia muito do lugar sim, só não sabia o nome das ruas nem como chegar onde não estava indo. Para se localizar por lá precisava da pesquisa simultânea. Usava pontos de referência que tinham muito mais a ver com suas lembranças do que com a geografia daquelas ruas, mesmo que tudo que lembrasse estivesse fortemente entrelaçado com essa geografia tão familiar.

“Segue reto nessa rua e vira na esquina onde eu e o garoto das andorinhas tatuadas no braço fizemos uma guerra de Cheetos na chuva quando eu tinha 15 anos”

Esse não é o tipo de informação que se dá, é o tipo de sentimento que se tem.

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Des(re)encontro

Da janela do vagão
vi quem já não existia
                                [para mim]
Apesar dos sentidos opostos,
compartilhávamos o mesmo horário

Como bilhetes rasgados e arquivos deletados
os rostos somem na cidade
e os passos já não somam ao caminho,
se perdem no passar das estações

sábado, 29 de janeiro de 2011

Depois da rotina engolir

E as ideias brilhantes sintetizadas nas melhores palavras vêm me visitar justo quando estou escovando os dentes atrasada para sair de casa ou durante um show, quando não existem canetas por perto. Surge então o conflito: boas ideias em horas ruins são mesmo tão boas assim? Dá um vazio esse negócio de não lembrar o que eu sei que já pensei. Essas palavras não escritas dissolvidas no meio da rotina vão pra onde? Elas ficam lá por quanto tempo? Voltam?