quarta-feira, 26 de maio de 2010

Suposições

               É assim, as sete e meia da manhã de qualquer dia útil. Derretida pelo sono, subo a rua junto a dezenas de desconhecidos. No sentido contrário vê-se mais algumas dúzias de pessoas que também não sei quem são. Acredito que vejo todos, noto que olho para alguns, sei que reparo em poucos. Nunca sigo ninguém, mas admito que penso no que uns e outras farão. A partir daí, sigo imaginando, o antes, o durante e o depois, passo a passo:


               Ela acordou com sono. O cansaço de hoje era o mesmo que sentia na noite anterior, ao se deitar. Pela manhã, o frio agravava o desânimo. Era uma daquelas pessoas que prefere dias de sol e não sabe apreciar a neblina que impregna as manhãs dessa época do ano. Quem notou a névoa que pairava na janela, fui eu; observar a paisagem não fazia parte de seu sistema de atos automáticos.
               Cambaleou para fora da cama. No banheiro, prendeu os cabelos, despiu-se e foi direto para o chuveiro. O banho desconfortável, regado à água morna não durou mais que 5 minutos. Enxugou-se sem muita atenção e, ainda úmida, vestiu-se. Por ultimo, jogou sobre os ombros um volumoso casaco de cor amarelo-mostarda (tivesse pegado outro casaco de seu armário e eu provavelmente não estaria redigindo tais imagens).
               Mochila nas costas, sacola em punho. Saiu de casa e trancou o portão pensando no café da manhã que tomaria no refeitório da firma onde está empregada ha mais ou menos cinco anos. Já desperta, teve sua primeira reflexão não-rotineira, achou seu quintal demasiado pequeno; ao meu ver, ele era proporcional as suas presentes aspirações.
               Olhou para seus calçados gastos e partiu. Mirando apenas o chão, atravessou algumas ruas, deixou para trás uns poucos quarteirões. Até que ao virar uma esquina entrou na rua onde, segundos depois, seria vista por mim.
               Reparei no casaco, nos sapatos gastos e no cabelo preso. Por não ter memória de suas orelhas, lhes atribuí um par de brincos pequenos que em minha mente também não têm forma definida. Nossos olhares não se cruzaram, nem cheguei a ver seus olhos, imagino-os cor-de-vime, muito claros, porém castanhos. Sobre sua idade, corro o risco de estar errada, acredito que tenha entre 33 e 35 anos. Tal informação jamais poderá ser confirmada; logo, não me contradirão; então, afirmo que já havia completado 34 anos de idade, ainda ouso comentar que seu trigésimo quinto aniversário será daqui três meses e onze dias.
               Passamos muito rápido uma pela outra, tempo suficiente para plantar em mim a semente de suas sensações e história. Ela continuou andando, eu fiquei para trás.
Pude imagina-la chegando no fim da rua; indo para a estação de metrô superlotada, esperando na fila para passar a catraca, descendo a escada rolante, aguardando o trem antes da faixa amarela na plataforma tumultuada, entrando no vagão abarrotado de mais trabalhadores exaustos. Comparei nossas impressões: o que para mim seria uma experiência inconveniente e desesperadora, para ela, é um hábito necessário. Cercada de gente por todos os lados, seu corpo pende para frente e para trás e mesmo sem se segurar nas barras, não corre risco de cair. O ambiente está absurdamente lotado e abafado e barulhento. Ela se sente deveras desconfortável, mas não lhe passa pela cabeça que a situação poderia ser outra, melhor ou pior.
               Meia hora mais tarde, salta do vagão e depois de deslizar por algumas escadas rolantes, vê novamente a luz do sol. No sol ela repara e sente a temperatura mais elevada, tira o casaco, agradece em voz alta o calor de agora; muito provavelmente agradeceu a Deus, mas como não quero criar teorias sobre suas crenças, pode ser que esteja apenas dando graças ao homem do tempo que apareceu no telejornal de ontem à noite dizendo que sol reapareceria ainda pela manhã e que na grande área clara, que ia do extremo sul do país a oeste do Mato Grosso do Sul, a temperatura teria elevação de mais de quatro graus Celsius.
               Eu nunca tinha imaginado essa firma, ela perdeu a conta de quantas vezes entrou lá. É durante o horário de entrada que pressinto mudanças em sua vida. Aroudo, homem de meia idade recém-divorciado vindo do interior do Paraná acabou ser contratado pela firma como chefe de manutenção. Logo no refeitório, os dois se entreolham tímidos. Ele se apresenta meio bronco e desajeitado, ela finalmente se dá o direito de sorrir cordialmente e sem querer, sente sua mente divagando sobre futuro e felicidade...
               Nesse mesmo momento, na escola, já estou no início de minha segunda aula.

               Deixo o resto da história por conta da personagem. Só espero que depois desse encontro ou por outro motivo extraordinário ela tenha, em breve, sonhos maiores do que seu pequeno quintal, também gostaria que ela desenvolvesse ousadia para realizá-los.

               A imagem é de Adams Carvalho, Ilustrador com um estilo incrível a quem admiro a beça

Um comentário:

  1. Li o texto, gostei, confesso que reli umas partes, mas até agora, não sei exatamente que comentário deixar... Acho que um: muito bom é meio pobre pra comentário, mas, ateh o momento, foi oq me veio a mente. =/

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