quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Relato Boreal

Minha boneca de neve
tem  olhos maciços
cravados na própria pele
cravados nos meus olhos
refletindo as cores da aurora
Tem o nariz alongado,
um  vegetal cru
quase fora de contexto
Tem reticências no lugar dos lábios
e  galhos rígidos
ao invés dos braços

Ao redor do pescoço
da minha boneca de neve
tem um cachecol comprido
que já foi meu
e que ainda é xadrez
Ela tem sobre o peito
botões que não fecham nada
que eu já vi desabotoados
que eu mesma abotoei

Minha boneca de neve
tem pernas de gelo
que não vão a lugar nenhum,
me esperam de pé
Tem a pele fria
que derrete sob meus toques
Tem a alma repleta de fractais
claros, complexos e cristalinos

Minha boneca de neve
não vive no meu país
nem pode me visitar,
Mas não acha graça quando
brincando, ameaço esquarteja-la
e guarda-la dentro do freezer
para vê-la sobrevivendo
Mesmo assim tem ciúme
dos castelos de areia
que construo nas encostas tropicais
aqueles que o mar sempre dissolve
antes de amanhecer

Minha boneca de neve
tem em si
a luz do dia polar, que dura meses
e o mistério das noites
que duram uma estação inteira
Vive no topo do globo
aos pés de uma colina
que eu nunca escalarei

No natal passado
segui o impulso de reencontra-la,
fui vestida de coragem,
sem luvas, sem gorro, sem nada
Fotografia pra carregar atrás dos olhos:
ela, eu e a nossa aurora
Bela última lembrança
antes da última tempestade

O vento me pegou despreparada, despida
O frio me virou do avesso
Congelado, meu sangue se estilhaçou
Meus ossos se retorceram de dor
Agonizei sobre a neve
Fui castigada pelo pior dos invernos

Minha boneca de neve
que não é feita de carne
só desmoronou, enquanto eu congelava
Por causa de seus pés descalços
presos ao chão de gelo
não pôde me socorrer
A vi deformada
enquanto o céu se abria mais uma vez

Com minhas mãos pálidas
busquei seus olhos
entre os destroços da paisagem branca,
encontrei seus braços
já secos e sem força, fincados no gelo
O desespero me percorreu a espinha
encobriu meus ombros
gelou minha nuca
e me tomou os pulmões
Com o ar do meu último fôlego
e com o que restava de energia
no fundo da minha garganta

Gritei

Meu brado rouco de uma única sílaba
fez todo o continente estremecer

O vento silenciou

Desencadeei a ira da colina
Morri sob a avalanche

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